17/04/2010

No Vietnam, à descoberta do tempo...

Sou um tipo que gosta de olhar, confesso. Um voyeur de almas, de gentes. Perco-me a observar pessoas, a tentar adivinhar quem sao, de onde vêm, para onde vão, como vivem, o que sentem. Ha muitos anos, ainda Lisboa era para um mundo de segredos, sentava-me na estaçao de Sta Apolonia a olhar quem partia, quem chegava, quem os esperava. Construia-lhes historias e ali ficava horas a fio, a vê-las desfazerem-se ou, as vezes, parecendo seguir o rumo que eu imaginara. Foram eles os meus primeiros amigos em Lisboa...Depois, fui vivendo. As historias vieram ter comigo, feitas roteiros com personagens de carne e osso, com amores e desamores, grandes sonhos vividos ou desilusoes confirmadas, dores profundas e alegrias imensas. E eu fui crescendo, tornando-me gente. E pode viver-se toda uma vida sem nunca se chegar a gente... Adiante. A verdade é que nunca deixei de observar mas fui-me roubando o tempo. Usei-o noutras coisas, com a urgencia de quem, como diz o Jose Mario Branco, sabe que ha sempre qualquer que está para acontecer...E nessa inquietaçao, talvez linda como diz a cançao, os anos foram passando sem que eu passasse muito tempo a observar a vida e a pensar. E de repente, tragica e dolorosamente, a Lena devolveu-me o tempo. Deixou-mo de presente, com amor e com aquele sorriso sacaninha e um empurrão e um doce e carinhoso "vê lá se o usas para pensar, estupido!", como só ela sabia dizer.
Aqui, no Vietnam, tenho tentado usar o tempo para me observar a mim. À minha volta vejo gente que nunca conhecerei, como os de Sta Apolonia, e que me sorri como se fossem mil bocados de um espelho que me devolve imagens da minha vida. Nao falam, sorriem só, e por isso convidam-me, outra vez, a criar-lhes os dialogos, a inventar-lhes as historias. Historias que, afinal, descubro depois, serem apenas as minhas. La no fundo se calhar as vidas da gente nao sao tão diferentes assim, tudo depende, como numa foto, do angulo de onde se dispara. Aqui, no Vietnam, tenho procurado varios angulos, outras maneiras de olhar o que parece imutavel, estatico, absurdamente gigantesco e intransponivel. Reaprendo olhando para tras, para o que ha muitos anos ja vivi, e ganho a certeza de que é possivel.
Aqui, no Vietnam, percebo que há que saber transformar a dor e a revolta em saudade e admiração, essas sim mais forte que o inexorável passar do tempo.
A vida continua pode parecer, 2 meses depois ( e não 6 ? E não 2 anos ? ) uma frase idiota, fria, vazia de sentimentos.
Aqui, no Vietnam, sozinho com as almas que me habitam, deixei de ter medo de pensar assim. Com a cumplicidade de muitas horas de conversas com quem ja partiu. A vida continua, sim! E eu fico por cá - até que um dia seja eu o cumplice que parte - com mais uma janela iluminada no meu coração e, ainda e sempre, com espaço para quem vier. E quem chegar, mesmo de muito longe, vai saber perceber que essas janelas têm nomes e quem as ilumina é intocável e eterno, e saberá construir a sua própria janela.
Daqui, do Vietnam, vou sair com um passado, um presente e com um futuro. Feliz por saber que tenho e terei para sempre pessoas fantasticas na vida.

(A foto é a que trouxe e vai ficar a navegar num barquinho de bambu aqui no Vietnam. Nao resisti ao "See you in Sunset Boulevard" da t-shirt... See you everywhere and forever!)
Escrito em Hoi An, Vietnam, a 17 Abril 2010